Considerações sobre o cuidado materno e maturação neuroendócrina

sábado, 26 de março de 2016



O primeiro amor da criança é sua mãe, essa compreensão remonta as observações de Freud, ainda no final do século XIX. Freud (1895) explicou que quando um adulto (mãe) cuida de uma criança indefesa, no sentido de eliminar algum desprazer (decorrentes das necessidades da vida) produz-se no cérebro da criança facilitações entre vias neurais do córtex e de regiões subcorticais em relação ao cuidador. Estas memórias, relacionadas ao desamparo inicial dos seres humanos, vêm a ser a fonte primordial de todos os motivos morais e constituem a base de nossa visa mental.







Neurociência e Afeto

A neurociência vem demonstrando que as primeiras experiências de vida influem muito fortemente na formação da personalidade. Sobretudo, influenciam a maturação neuroendócrina do sistema de resposta ao stress. O principal mecanismo neuroendócrino de resposta ao stress é o eixo hipotálamo hipófise e adrenais (eixo-hpa). Esse eixo segue um programa de maturação pós-natal marcadamente sensível à experiência precoce, de forma que abandono, abuso e maus tratos, sofridos em fases iniciais da vida, acarretam consequências que podem permanecer por toda a vida.







Regulação do eixo-HPA

Em uma situação de estresse, o eixo HPA é ativado. Neurônios do núcleo paraventricular (PVN) secretam o fator liberador de corticotrofina (CRF), que na hipófise anterior estimula a liberação de hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) na circulação sanguínea. O ACTH atinge o córtex supra-renal e conduz a libertação de hormônios glicocorticoides na circulação. Os glicocorticoides podem regular sua própria secreção através da ligação a receptores em regiões do eixo-HPA (como mostra a figura abaixo). Eles também se ligam a receptores de corticoide no hipocampo e outras estruturas cerebrais.








Estresse no Início da Vida e Suas Consequências


Estudos com o modelo animal evidenciaram que o período neonatal é marcado por uma baixa sinalização por sinalizadores de stress. Estímulos que normalmente acarretam uma resposta de stress em um animal adulto, não produzem o mesmo efeito em um neonato. Esse período ficou conhecido como “período hiporresponsivo ao estresse”. Em ratos esse período foi descrito ocorrendo nas duas primeiras semanas de vida e em humanos esse período foi observado no primeiro ano de vida. Nesta fase, o "único" estímulo capaz de gerar uma resposta característica de estresse nos neonatos é a privação dos cuidados maternos. O aumento (agudo ou crônico) dos níveis de sinalizadores  de estresse no período de hiporresponsividade influi diretamente no programa de desenvolvimento do sistema nervoso central, acarretando atrofia de regiões como o hipocampo com consequências desfavoráveis, como problemas de adaptação, aprendizado, memória, baixa resiliência para enfrentar adversidades e predisposição para psicopatologias como a depressão maior e outros transtornos de humor.








Regulação Gênica e stress


É importante entender que os receptores de corticoide (GR - ver fig. abaixo) são fatores de transcrição conservados evolutivamente (estão presentes em diversas espécies, entre elas nós e os ratos) e podem regular a transcrição gênica de diversas formas (ver fig. abaixo). Muitos estudos têm demonstrado que a transcrição de fatores tróficos, que são sinalizadores importantes para o desenvolvimento e plasticidade cerebral, é afetada pelo stress. Além disso, o estresse no período neonatal acarreta em mudanças nas concentrações de receptores de corticoide em regiões do eixo-hpa o que influi no mecanismo de feedback negativo de resposta ao estresse. Existe uma clara correlação entre psicopatologias, experiencia precoce e mediadores de estresse. Tanto a hipo-resposta quanto e hiper-resposta ao estresse são descritos em quadros psicopatológicos.









"O protótipo de uma vida feliz começa na relação com a mãe" 

Essa questão, foi observada inicialmente em crianças em orfanatos. Pesquisadores como René Spitz e John Bowlby, com base em um referencial psicanalítico, investigaram os efeitos da ausência do cuidado materno durante a infância descrevendo suas consequências. Spitz por exemplo,  descreveu em crianças privadas do cuidado materno um quadro de depressão, que ele chamou de hospitalismo. Crianças em orfanatos que recebiam cuidados de higiene e alimentação mas não formavam vínculos afetivos efetivos com um cuidador progrediam para um quadro de apatia e embotamento afetivo com consequências drásticas para o desenvolvimento. John Bowbly aproximou estas observações da etologia e propôs a teoria do apego, argumentando que os recém-nascidos apresentam um repertório comportamental evolutivamente importante de busca de proximidade para o cuidador,  para assim, regular suas funções imaturas e garantir a sobrevivência. 




                                     René Spitz 
                                                       http://formazionecontinuainpsicologia.it/rene-spitz-gli-effetti-devastante-della-deprivazione-materna/


                                     John Bowlby
                                                         http://psicoterapeutas.eu/john-bowlby/



Os trabalhos atuais realizados em laboratório vêm descrevendo os mecanismos moleculares subjacentes a estas descrições iniciais. Na figura abaixo podemos observar que o aumento de glicocorticoides leva redução na plasticidade cerebral, assim como redução de BDNF. Também pode ser observado que a ação dos antidepressivos atua neste sistema, aumentando os níveis de BDNF, o que já foi descrito como subjacente a melhora do quadro. Na verdade, antidepressivos como os inibidores seletivos da recapacitação de serotonina, boqueiam a recaptação de serotonina provocando um aumento na atividade do circuito e esse aumento leva ao aumento na expressão de fatores dependeres da atividade como o BDNF, entre outros. Dessa forma, muitos estudos mostram que a melhora do quadro está relacionada ao aumento da expressão e sinalização por fatores tróficos (hipótese neurotrófica da depressão).  Pois estes aumentam a capacidade de plasticidade cerebral, principalmente no hipocampo, que é muito afetado pelo stress.



O Stress excessivo no inicio do desenvolvimento vêm sendo descrito por deixar uma marca epigenética em genes decodificadores de fatores como o BDNF e na expressão receptores para serotonina e dopamina, levando a uma redução na transcrição destes genes. Como já vimos, essa redução lava a atrofia hipocampal com consequências desfavoráveis para adaptação a situações novas, aprendizado, humor e está na base de uma série de transtornos de personalidade e psicopatologias como depressão, transtorno de stress post traumático e pânico.    




"Meus neurônios podem influenciar seus neurônios" (Eric Kandel)



Então escolha bem com você se relaciona. Em um trabalho realizado a pedido da OMS John Bowlby (1952) investigou a questão dos maus tratos sofridos na infância e os relacionou a uma diversidade de consequências desfavoráveis. Porém, no final do trabalho destacou que estas consequências podem ser reversíveis. A questão é que, no desenvolvimento de uma psicopatologia, como a depressão, dois fatores estão por base, o fator genético hereditário e a história individual. O padrão comum é o sujeito manter ao longo da vida o que aprendeu em suas primeiras experiencias, durante a infância. Em muitos casos, sem ter a oportunidade de trabalhar essas questões (quando se trata de tendencias não adaptativas), assim, o que opera é a tendencia a repetição das experiências iniciais.  
   








Referências


Bowlby, J. (1952). Maternal care and mental health: A report prepared on behalf of the World Health Organization as a contribution to the United Nations programme for the welfare of homeless children.

Francis, D. D., & Meaney, M. J. (1999). Maternal care and the development of stress responses. Current opinion in neurobiology9(1), 128-134

Freud, S., & Gabbi Jr, O. F. (1995). Projeto de uma psicologia. Imago.

Liu, D., Diorio, J., Tannenbaum, B., Caldji, C., Francis, D., Freedman, A., ... & Meaney, M. J. (1997). Maternal care, hippocampal glucocorticoid receptors, and hypothalamic-pituitary-adrenal responses to stress. Science,277(5332), 1659-1662.

Liu, D., Diorio, J., Day, J. C., Francis, D. D., & Meaney, M. J. (2000). Maternal care, hippocampal synaptogenesis and cognitive development in rats. Nature neuroscience3(8), 799-806.


.



Nenhum comentário:

Postar um comentário

Postagem mais recente Página inicial
 
Retornar ao início: Affective Neuroscience.